Personalidades de destaque em diversos segmentos da cultura refletem sobre o ‘Dia Internacional da Mulher’

Foto: Montagem
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Em uma reflexão sobre a história da arte e da cultura, o Dia Internacional da Mulher ressalta as raízes matriarcais que constroem o universo criativo feminino. Muito antes de o cenário cultural ser moldado por figuras masculinas, as mulheres já dominavam a escrita, a musicalidade e os movimentos do corpo. Mestres em técnicas como pintura, tapeçaria, costura e escultura, elas também se destacavam nas expressões performáticas, como a dança e o canto, consolidando um legado artístico que reverbera até os dias de hoje.

Mato Grosso do Sul se destaca, com grandes nomes que marcaram a história cultural do estado. A reportagem mergulhou na trajetória de mulheres que, com talento e dedicação, contribuem para essa rica cena cultural. Entre elas, Raquel Naveira e Sylvia Cesco, na literatura, Lígia Tristão, no teatro, e Paula Fregatto na música.

“Força de ser mulher e escritora”

Raquel Naveira é uma figura proeminente na literatura brasileira. Formada em Direito e Letras pela Universidade Católica Dom Bosco, ela lecionou no Departamento de Letras até sua aposentadoria. Mestrada em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Naveira também é membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras e da Academia de Ciências de Lisboa, consolidando sua posição como uma das vozes mais respeitadas da literatura contemporânea.

Como uma das principais vozes da literatura do Estado, para a reportagem Raquel Naveira observa uma crescente efervescência na cena cultural e literária de Campo Grande e do estado, marcada pela formação de coletivos, lançamentos e performances. “Movimentos como o ‘MUlherio das Letras’ e clubes de leitura como a ‘Confraria das Lagartixas’ são muito interessantes. Gosto de transitar por vários nichos com liberdade, de ter amizade e diálogo com poetas de diferentes gerações. O novo sempre vem e a história, as escritoras que vieram antes de nós, sempre devem ser lembradas”, afirma a escritora.

Para Raquel, o Dia Internacional da Mulher é uma importante oportunidade de reflexão sobre a luta pela plena cidadania feminina, um marco que simboliza as conquistas, mas também a persistente desigualdade de gênero, especialmente no campo da literatura.

Ela observa que a presença feminina é crescente em todos os ambientes da sociedade, especialmente nas universidades e na dedicação aos estudos. “Gosto de fazer parte da humanidade, de somar, de marcar com minha personalidade única o tempo que vivo, com minhas características e limitações, com a força e a fragilidade de amar ser mulher e escritora”.

“Mulheres também dominam guitarras”

A música sempre foi uma paixão para Paula Fregatto, que iniciou sua trajetória ainda na infância, tocando violão, e aos 15 anos ganhou sua primeira guitarra. Em 2019, entrou para a banda Naufrágil, ao lado de João Benitez, o que a inseriu no cenário musical de Mato Grosso do Sul e a apresentou a Pedro Fattori, do Vozmecê. Em 2021, Paula foi convidada a integrar o Vozmecê, com o qual gravou para o álbum “Tropicapolca”. Em 2024 se juntou a banda Codinome Winchester contribuindo também como compositora no novo EP, lançado em junho do mesmo ano.

Como mulher no cenário musical, Paula reconhece que, em alguns momentos, ser a única mulher em um ambiente pode ser desafiador. Ela acredita que é crucial que os homens também tomem iniciativas para promover um ambiente mais igualitário, ampliando o debate e expondo as questões de gênero.

“As redes de apoio entre mulheres da música são essenciais para fortalecer nossa presença e trocar experiências. Ana Karina Sebastião, Nico e Juliana Vieira são inspirações. Ainda há muitos espaços a serem ocupados, não só nos palcos, mas também nos bastidores, na produção e na técnica. Em Campo Grande, é fundamental fortalecer o apoio à cultura, ampliar oportunidades e enxergar a arte como ferramenta de cidadania e transformação social”, relata Paura para a reportagem.

Para Paula, a união e o apoio entre mulheres na música são essenciais para fortalecer a presença feminina. Ela destaca a parceria com Namaria Schneider, do Vozmecê, e a homenagem que receberam juntas com a Medalha Helena Meirelles em 2024, reconhecimento a mulheres instrumentistas de MS. “Esse ano já começou com muitos planos e desafios em todos os projetos que faço parte. Tenho algumas composições e penso em um dia lançá-las como trabalho solo, mas no futuro”, destaca.

“Dia da Mulher possui validade histórica”

Sylvia Cesco é poeta, cronista e professora, graduada em Letras Neolatinas e Pedagogia pela FUCMT (atual UCDB), com pós-graduação pelo MEC-INEP/USP e especializações em Língua Portuguesa e Roteiro para Rádio, TV e Vídeo. Natural de Campo Grande, é uma figura importante no ativismo cultural e literário do estado, sendo autora, cronista e poeta, além de diretora de peças de teatro e letrista.

A escritora reconhece a evolução da participação feminina na literatura e nas artes em Mato Grosso do Sul, mas enfatiza que isso não garante o reconhecimento de seus talentos pela sociedade, especialmente pela parte masculina. Ela observa que ainda existe grande resistência, preconceito, desconsideração e até desrespeito às criações artísticas das mulheres, um cenário que exige uma contínua luta para conquistar espaços sociais, profissionais e culturais.

“Acredito que, se queremos reverter essa situação e sermos tratadas com igualdade de direitos, com respeito e dignidade, precisamos, nós, mulheres, primeiramente, tratarmos nós mesmas, com generoso acolhimento e solidariedade. E é com esse entendimento que venho tentando abrir portas para mim e outras companheiras que ‘navegam’ nos rios da literatura e da cultura de MS”.

A autora expressa dificuldades em responder sobre o impacto do Dia Internacional da Mulher nas produções artísticas femininas no estado. Embora reconheça que a data estimula reflexões importantes sobre o acesso das mulheres aos espaços, não apenas na arte, mas em diversas áreas, ela ressalta que é fundamental que as mulheres pratiquem a solidariedade em vez da competição dentro do próprio universo feminino.”A finalidade da criação do Dia Internacional da Mulher em 1910, continua tendo sua validade histórica. Compete a nós, não nos contentarmos com um lindo buquê de flores, um jantar à luz de velas ou um churrasco”.

Ocupar, provar e resistir

Ligia Tristão Prieto é artista, pesquisadora com o foco em equidade de gênero e diversidade na criação cênica, escritora, teatróloga e cineasta. É vencedora de diversos prêmios, idealizadora de diversos espetáculos, web séries e tantos outros projetos. Apesar do currículo de diretores homens não chegarem aos pés do seu histórico, ela ainda precisa estar constantemente provando que sabe, sim, o que está fazendo. Para o jornal O Estado, a profissional comenta como as escolhas artísticas das mulheres são invalidadas pelos homens, mesmo com mais de 40 espetáculos e 20 anos de carreira.

“O maior desafio enfrentado é o desrespeito e a constante desvalidação do saber feminino na direção artística. Mesmo com anos de experiência e especializações, persiste a necessidade de provar competência, enquanto os homens são automaticamente reconhecidos. Esse questionamento constante do conhecimento das mulheres é um obstáculo injusto e desnecessário, que atrasa e dificulta o trabalho”, pontua.

Tanto no teatro como no cinema, os espaços estão constantemente ocupados por figuras masculinas, principalmente na linha de frente. Ligia diz que mudança acontece, mas apenas como uma espécie de ‘cumprimento de cota’.

“Há uma mudança acontecendo, mas ainda superficial, como uma obrigação de inclusão. As mulheres ocupam novos espaços na criação, mas seguem precisando provar seus méritos e enfrentar desrespeitos velados. Muitos homens ainda resistem a essa presença, e a representatividade feminina continua limitada, eles não suportam que as estejam ocupando outros lugares. No entanto, há um início de transformação, a construção de redes de fortalecimento é essencial para que essa ocupação seja real e respeitada”.

Ainda sobre a predominância masculina, ela ainda identifica, não só no Brasil, que mulheres ocupam os lugares de produção, como forma de subserviência. “A gente tem algumas mulheres assumindo direção, criação, mas principalmente elas assumem produção, porque as mulheres foram criadas para servir, e os homens no lugar da criação, porque são gênios da criação”.

A criação na mão delas

A diretora coloca em cheque um fato um tanto ‘curioso’ do mundo da criação: as histórias de mulheres, até hoje, são contadas por homens. “Ainda tem muitos homens se apropriando das histórias das mulheres e colocando elas em cena da forma como eles gostariam que fossem”, explica. Mas, ela reforça que existe uma diferença entre entender a situação e realmente vivê-la.

“Esse abismo que há entre o entender aquela realidade e viver aquela realidade, esse lugar de representatividade da existência. Quem é que está contando aquela história? Por que? Como? A partir de quem que ela está sendo contada? A mudança que eu gostaria de ver é da ética na criação, onde a gente respeitasse as representatividades de existência nas criações”.

Como agente de mudança, Ligia continua na luta de contar a própria história, para ela e para todas nós.

“Tudo que eu escrevo, tudo que eu crio é a partir de mim, é um grito meu para o mundo, é um desejo de mudança, de revolução, que nasce a partir da minha história, da minha historicidade, de quem eu sou e das existências que eu vivo. Então, sim, a minha história vai ser contada, vai continuar sendo contada, para que outras mulheres também consigam se empoderar e contar suas próprias histórias, e assim a gente consiga ocupar nossos lugares também de existência, como todas as outras pessoas no mundo devem ocupar”.

Por Amanda Ferreira e Carolina Rampi 

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