A narrativa que segue retoma a história do “sanfoneiro” Dino Rocha, mas também coloca-nos diante dos olhos uma provocação. Dino nasceu em 2 de junho de 1944, no lugar em que a terra vermelha encontra o céu sem fim, no Mato Grosso do Sul. Com o acordeom, seu primeiro amigo, descobriu a música como rio, vento e saudade. Cresceu entre polcas, guarânias, chamamés – sons que atravessavam dançando entre Brasil e Paraguai, sem mostrar passaporte. Muito jovem, começou a tocar nos bailes, ritmando os pés dos velhos e jovens com sua sanfona encantada. Seu nome correu por fazendas e vilas, até chegar às rádios. Nos anos 1970, gravou seus primeiros discos e se tornou referência no chamamé sul-mato-grossense. O feiticeiro dos foles transformava histórias em notas, fazia até quem não sabia dançar se arriscar no salão. O tempo passou, acumularam-se os discos, veio a solidão e o cansaço do músico.
Foi entre notas e memórias que sua amizade com Julio Cesar Matos Borba floresceu. Julio não era apenas um admirador da música de Dino; era alguém que compreendia o chamamé como expressão de identidade e como força vital da cultura sul-mato-grossense. Tornou-se confidente, parceiro de conversa e de som, guardião das histórias que Dino contava e das que nunca precisaram ser ditas.
Julio soube reconhecer em Dino um elo vivo entre o passado e o presente da música regional. E foi além: fez do chamamé o assunto de seus trabalhos e do seu violão de sete cordas um espaço de diálogo com essa tradição. Não apenas acompanhou Dino, mas expandiu seu legado. Seu toque reverbera entre Mato Grosso do Sul e o Brasil, entre o Brasil e Abya Yala – o nome verdadeiro desse continente que existia muito antes de o chamarem de América. A amizade entre os dois não foi apenas um encontro de afinidades musicais, mas um gesto de continuidade, um reconhecimento mútuo. Em meio a conversas sobre a vida e a arte, Julio tornou-se um sul-mato-grossense que ostenta uma conduta bonita e aceitável, um convite para qualquer outra pessoa que habite estas terras: mais que alguém que mora na terra, um cidadão que a compreende pelo som, gestos e memória viva de sua gente, e que põe sua voz e, no caso, seu violão, ao serviço da memória, da beleza e da cultura local.
Nos últimos anos, enquanto o tempo cobrava seu preço sobre Dino, Julio permaneceu ao seu lado. Talvez tenha sido seu último amigo – aquele que ouviu sua sanfona antes do silêncio, que segurou a última nota e a fez ecoar – como ainda ecoa e reverbera hoje – para muito além da despedida. Dino Rocha partiu em 5 de novembro de 2019, mas sua música ainda ressoa em outras obras e no curso de música da UFMS. Seu chamamé, antes limitado às margens, agora percorre novos caminhos, carregado por aqueles que entendem que cultura não é apenas tradição, mas presença. Mais forte que isso, ainda: sua história e a dos que ajudaram a construir parte do tecido da vida local, continua provocando a nós todos. Amizades como essa abrem espaço para discutirmos nossa relação com a construção cotidiana da expressão artística, parte da cultura sul-mato-grossense.
Afinal, quão abertos estamos para territorializar nossas ideias sobre cultura, tocando, cantando e compartilhando o lúdico em nossa vida? Quão amigos somos do imaginário Maracangalha? De Zé Pretinho? Conhecemos os nossos cantores e cantoras, nossos artistas mambembes e do teatro? Somos amigos de quem encarna a cultura e a arte, para pensar a cultura e a arte no MS?
Josemar de Campos Maciel é Doutor em Psicologia (PUC-Campinas) e professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UCDB. Email: maciel50334@yahoo.com.br
Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.
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