Como já disse Manoel de Barros, “Palavras fazem misérias, inclusive músicas!”. Ao falarmos de pesquisa em música, adentramos os limites da palavra, tentando expressar algo sobre uma arte que delas prescinde. E talvez esteja aqui a dificuldade de compreender por que a Universidade não apenas abriga o ensino da música, mas também fomenta sua pesquisa.
Curiosamente, essa é uma dificuldade recente. Jamais houve construção do conhecimento no Ocidente que não incluísse a música como perspectiva de investigação. Como nos relata Platão, a música poderia ser tanto uma ciência matemática, como propôs Pitágoras, quanto uma ação de cunho ético na vida dos cidadãos. Durante milênios, a educação clássica a considerou uma forma de conhecimento capaz de tornar sensíveis relações matemáticas abstratas. É por isso que, já no século XVII, Johannes Kepler utilizou as escalas musicais como forma de conectar a complexidade dos movimentos planetários a um sistema compreensível, contribuindo para os fundamentos do que seria a teoria gravitacional de Newton.
Mas nesse período, onde florescia na Europa um pensamento dito humanista, a música passou a significar mais do que um conjunto de normas matemáticas. Não por coincidência, foi Vincenzo Galilei, pai de Galileu, um dos responsáveis por expandir essas pesquisas para entender como a relação entre os sons influenciaria os afetos humanos, o que contribuiu para a invenção de novos instrumentos musicais e para o desenvolvimento da ópera. E foi seguindo essa tradição que Jean-Jacques Rousseau, hoje célebre por suas teses sobre o contrato social, candidatou-se à Academia Francesa de Ciências com um tratado sobre harmonia e notação musical.
Essa mesma compreensão da música como forma de conhecimento segue viva, desde 2002, no Curso de Música da UFMS, com pioneiros como Evandro Higa e Manoel Rasslan, dedicando-se não apenas à formação de professores e músicos, mas também à investigação de temas fundamentais, como a formação cultural de Mato Grosso do Sul através de seus movimentos musicais fronteiriços e as bases curriculares do ensino de música no estado.
O curso também impulsiona projetos como o “Pantanal Sounds”, que tem alcançado repercussão internacional em parcerias com Universidades como Harvard e a Paris 8. O projeto explora novas tecnologias no estudo sonoro da biodiversidade do Pantanal, abordando tanto a riqueza do ecossistema quanto as ameaças políticas que o cercam. Como define Gilles Deleuze, “a música torna audível o não audível”. Assim, essa forma de compreender o conhecimento musical tem resultado não apenas em livros e artigos, como também nas pesquisas sonoras de professores como Gustavo Penha e Max Packer, e na formação de uma nova geração de compositores Sul-mato-grossenses como Lucas Mateus Silva, Ingrid Yamazato e Mariana Terena.
De certo modo, todo músico é um pouco pesquisador: do guitarrista que busca o dedilhado mais eficiente ao produtor que trabalha duro para que sua canção atinja o sucesso esperado. Há tempo (e lugar) para toda música debaixo do céu: para o Carnaval, o samba; para a celebração religiosa, o hino. A música fruto de experimentação e pesquisa não reivindica importância superior, mas um espaço necessário, crucial para o desenvolvimento de novas tecnologias, sonoridades e processos que beneficiarão não apenas o universo acadêmico, mas também o mercado e outras áreas do conhecimento. Aqui reside a capacidade da música de fazer alegrias e, inclusive, palavras.
William Teixeira é Professor do Curso de Música e do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens da UFMS. Email: william.teixeira@ufms.br
Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.